O Sebastianismo no Romance da Pedra do Reino







O SEBASTIANISMO NO ROMANCE PEDRA BONITA, DE JOSÉ LINS DO REGO


Sérgio Fernandes de Lima
Orientador: Prof. Dr.Ozeas Caldas Moura

INTRODUÇÃO

Pode-se dizer que o Sebastianismo é uma forma de messianismo lusitano que tem povoado, ao longo dos séculos, o universo imaginário do povo português e que, devido à colonização, encontrou seguidores também no Brasil.
Essa crença gira em torno da lenda de D. Sebastião (penúltimo rei de Portugal antes do domínio espanhol, que durou de 1580 a 1640). Segundo a mesma, o rei D. Sebastião não teria morrido na batalha de Alcácer-Quibir, ocorrida na África a quatro de agosto de 1578, e retornaria, em um dia de nevoeiro, para ocupar novamente o trono e fundar o quinto império, ou seja, um império universal sob a regência portuguesa.
Ao longo do tempo o termo Sebastianismo ganhou um sentido um pouco mais amplo: o messias, que imporia uma nova ordem política e social, não tinha mais uma identificação única, passando a ser chamado apenas de o encoberto. Essa lenda, por estar presente no imaginário do povo português, acabou ganhando espaço também na literatura e na política.
Na literatura portuguesa, o mito do Sebastianismo pode ser encontrado, por exemplo, nas seguintes obras:
<!--[if !supportLists]-->·        <!--[endif]-->Os Lusíadas - de Luiz Vaz de Camões, onde o Sebastianismo tem um caráter religioso e patriótico;
<!--[if !supportLists]-->·        <!--[endif]-->Frei Luiz de Souza - de Almeida Garrett, essa obra é uma autêntica tragédia Sebastianista;
<!--[if !supportLists]-->·        <!--[endif]-->No primeiro sermão de Padre António Vieira, que fala sobre os ideais Sebastianistas e que cita o surgimento de um novo Império: o quinto e último império;
<!--[if !supportLists]-->·        <!--[endif]-->Mensagem - de Fernando Pessoa. Na terceira parte dessa obra, intitulada "O Encoberto", o tema central é o Sebastianismo e o sonho do "Quinto Império".

No Brasil, o fenômeno do Sebastianismo manifestou-se, sobretudo, entre as camadas mais populares da sociedade. Ele pode ser encontrado em diversos Estados do Sul, Sudeste e Nordeste. Já na Literatura Brasileira, o Sebastianismo pode ser encontrado, pelo menos, nas seguintes obras:
<!--[if !supportLists]-->·        <!--[endif]-->Os Sertões - de Euclides da Cunha, obra que conta a tragédia de Canudos e a crença de que D. Sebastião sairia do mar com todo seu exército.
<!--[if !supportLists]-->·        <!--[endif]-->Pedra Bonita - de José Lins do Rego, relato da tragédia pernambucana de 1838.
<!--[if !supportLists]-->·        <!--[endif]-->Romance da Pedra do Reino - de Ariano Suassuna, também sobre a tragédia da Pedra Bonita, onde ocorreu a morte de várias pessoas, para que com seu sangue se lavassem as duas “torres” da catedral do reino de D. Sebastião, encantado nas duas pedras ali existentes.
<!--[if !supportLists]-->·        <!--[endif]-->O Esperado e A Voz do Oeste - de Plínio Salgado, relato de movimentos Sebastianistas no tempo dos Bandeirantes.
<!--[if !supportLists]-->·        <!--[endif]-->Reino Encantado - de Solidônio Leite, baseado nas pesquisas de seu pai Antônio de Souza Leite, também sobre o episódio da Pedra Bonita.

Nesta pesquisa, analisaremos apenas a manifestação do Sebastianismo na obra de José Lins do Rego, especificamente no romance Pedra Bonita, onde o autor retoma a tragédia de 1838 que serve de pano de fundo para uma nova manifestação mítico-messiânica na Pedra Bonita, município de Vila Bela – PE, por volta de cem anos mais tarde.
Para isso, começaremos expondo as raízes do mito do Encoberto, do rei-messias que voltaria para salvar Portugal e estabelecer o Quinto Império, ou seja, ressaltaremos os elementos formadores do mito e as condições que existiram para que o mesmo se manifestasse. Passaremos então a analisar a transferência do mito para D. Sebastião. Finalmente, faremos um levantamento da presença do mito no romance Pedra Bonita.
A metodologia de pesquisa consistirá em pesquisa bibliográfica de obras que tratam sobre mito, História de Portugal, História do Brasil e Literaturas portuguesa e brasileira. O embasamento teórico está calcado na teoria do mito de Mircea Elíade.
            O presente trabalho é fruto da admiração que temos pela Literatura, sobretudo a de língua portuguesa e o desejo de entender um pouco sobre a força que o mito exerce sobre o homem. Nosso alvo é resgatar, com esta pesquisa, a presença do mito Sebastianista, engendrado em terras lusitanas e que encontrou campo na Literatura brasileira, ainda que muitos o desconheçam.

CAPÍTULO I – As raízes do mito Sebastianista

Neste capítulo, buscaremos os ingredientes formadores do que veio a tornar-se, mais tarde, o mito Sebastianista. Podemos identificar, no mínimo, três elementos formadores fundamentais, quais sejam: as novelas de cavalaria, o Joaquinismo e o Messianismo judaico-cristão.
Ao estudar o mito, entramos em um campo difícil, onde a longa e a curta duração dos acontecimentos dialogam de perto, ao mesmo tempo em que o estudo e a pesquisa se obrigam do factual, do linear, ou seja, dos acontecimentos históricos passados e atuais. O estudo deve compreender a mentalidade e a estrutura que está dando o suporte necessário ao mito. Como diz Vainfas, no prefácio de No reino do desejado, livro de Jacqueline Hermann, “O mito é rebelde” (HERMANN, 1998:11).
Dividiremos o capítulo em três instâncias: como se faz um mito, as linhas formadoras do Sebastianismo e o contexto histórico português.

1.1. Como se faz um mito

Alguns fatores formadores dos mitos são identificáveis. Talvez o mais importante deles seja o sofrimento. É no sofrimento que o ser humano busca alternativas, “é que no fundo do abismo, desponta a voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio, surge a luz.” (Joseph Campbell, citado em MEGIANI, 1995:7)
Há uma diferença entre as sociedades que entendem a história de forma linear, sem repetições, e as sociedades que acreditam em uma história cíclica, ou seja, uma eterna repetição das eras assim como as estações. Na primeira, é muito mais comum a idéia do milenarismo, um período de mil anos que preparará a humanidade para a segunda vinda do messias, e que vai servir de suporte para as idéias do monge Joaquim de Fiore; na segunda, o que prevalece é o mito da idade do ouro já referido, e que também servirá de embasamento à crença de que D. Sebastião voltaria, pois a história é cíclica, vai e volta (MEGIANE, 1995:2, 15 e 16; ELÍADE, s/d. p.62). Apesar desta diferenciação, os mitos, por vezes, misturam-se, e este parece ser o caso de Portugal, que, apesar de ser predominantemente cristão (milenarista), assimila o mito da idade do ouro – o tempo que substituirá um período de grande sofrimento – e ainda o de um messianismo conjugado ao mito do Encoberto.
Outro fator é a mortalidade. Segundo Elíade, é o homem primitivo o ser em que se desenvolve a explicação para a morte, evento extremo da existência humana. Dessa forma, e acompanhando a fixação dos grupos e do advento da agricultura é que o homem começa a comparar a sua vida ao ciclo das plantas; nada mais se é do que uma semente que deve morrer para renascer, segundo seu entender; é a parábola do grão de mostarda do evangelho, é a morte e o renascimento. Como exemplo maior e salvador da humanidade, as figuras heróicas e messiânicas devem passar por esta experiência de morte e ressurreição; é o salvador que se auto-sacrifica pela criação.
Assim, esses mitos relacionados à sucessão dos tempos, do advento de uma nova era, da morte e da ressurreição, do sacrifício divino que pertenceram à matriz da humanidade se perpetuam, evoluem sem perder a base comum, encontram-se nos choques culturais e por vezes recebem matizes e vernizes que os acondicionam dentro de religiões dominantes (ELÍADE, s/d. p. 148). É dentro desta última observação que encontramos elementos essenciais para o entendimento do Sebastianismo. São raízes mitológicas pré-cristãs e judaicas que ajudam a estruturar o mito do Desejado.
Antes de avançarmos no campo das linhas formadoras do Sebastianismo, um último fator importante deve ser observado: o herói. Esse, como já foi dito, é o grande representante da humanidade, o seu redentor, e aqui devemos lembrar que herói, no contexto mitológico, não é apenas o ser que pega em armas, mas o que se sacrifica por algo maior do que ele, “é o salvador que se auto-sacrifica.” Essa figura onde se depositam as esperanças da humanidade guarda sua importância na “moralidade da causa que o leva ao sacrifício,” ato este que encaminhará de alguma forma a humanidade a uma nova era.
 D. Sebastião encarna essas características. É o “Desejado” que se compromete ainda em vida a levar seu reino ao seu lugar devido. É o herói que se auto-sacrifica, que passa pela experiência extrema da existência, a morte. É o ser que se “sacrifica por algo maior do que ele” e dá à humanidade a esperança de seu retorno. É o homem-semente que morre para renascer (ELÍADE, s/d. pp. 148-151).
Essa idéia é crucial para o entendimento do Sebastianismo: D. Sebastião, sem querer, encenou na vida real um dos “sonhos arquetípicos da humanidade.” Note-se a raridade desta situação e a força que esta pôde exercer sobre toda a mentalidade de um povo. Mesmo reconhecendo raízes anteriores a D. Sebastião, é, sem dúvida, com este que o mito se consolida e é claro que não é à toa que o mesmo leva seu nome.


1.2. As linhas formadoras do Sebastianismo

O Sebastianismo é fruto da confluência de três “linhas” distintas: as Novelas de Cavalaria, que transmitem o mito celta do “encoberto Arthur”; o Joaquinismo, e o Messianismo judaico-cristão (MEGIANE, 1995:8).
A primeira linha apontada, a das Novelas de Cavalaria, é originária da Bretanha e constitui a mais original das influências, já que o Joaquinismo é de certa forma uma conseqüência do Milenarismo judaico-cristão. O mito arturiano remonta a antigas lendas celtas a respeito de um “Rei encoberto” (SPALDING, 1995:124-125; HUBERT, 1942:329-332; ELÍADE, s/d. p. 151) e seu eixo central é a luta contra os invasores e a unificação do reino em torno desta, mas a narração revela muito mais.
O grande sentido dos acontecimentos narrados nas novelas de cavalaria – luta, traição, adultério, incesto e a morte final (ou desaparecimento) do rei e de seu filho incestuoso, mortos um pela mão do outro –, revela o fim do mundo, a desagregação de uma ordem, o caos. Este fim não é puro e simples. Ele se fortalece e se mantém na esperança do retorno do rei que não morreu (neste caso o rei Artur). Ele ficou “encoberto nas névoas da Ilha de Avalon”, de onde retornará quando o reino novamente precisar. A história ganha seu formato completo (e que será base para suas transmutações na França e na Península Ibérica) no século XII, pela pena de um ou vários autores anônimos. Não é nenhuma coincidência com o Sebastianismo a constatação da mentalidade cavalheiresca entre os portugueses, como bem atesta o trecho a seguir:
“ ... [No reinado de D. Afonso IV, 1325 em diante,] o que se consumia eram histórias importadas do estrangeiro: os romances de cavalaria da matéria de Bretanha (isto é, o conjunto das lendas relativas ao rei Artur e seus cavaleiros na defesa da Bretanha invadida; os factos históricos que estão na base das lendas situam-se à volta de 1100 e a cristalização lendária está completa e já é corrente em 1300).” SARAIVA, s.d. p. 105.

O mito arturiano será empregado sucessivas vezes na história da Bretanha e posteriormente da Inglaterra para assegurar a unidade territorial e a comunhão na luta contra o invasor. Por isso não é estranho que o conto tenha se consolidado em um período (já referido acima) em que a dominação normanda nas ilhas britânicas (após 1066) era identificada como o grande inimigo. No período subseqüente, o mito chega à França. Traduzida em 1155, a estória assimila novos elementos, como o “amor cortês,” por exemplo (MEGIANE, 1995:38).
É importante observarmos dois movimentos distintos, mas complementares para a chegada do mito à península. O primeiro movimento está relacionado ao tráfego de “monges, peregrinos e guerreiros” do além Pirineus para o aquém Pirineus e vice-versa. Este fluxo humano diretamente ligado à França carrega para Portugal diversas características que irão dar forma ao seu povo e aos traços culturais, nada mais expressivo para ilustrar este relacionamento do que o fato do primeiro soberano do Condado Portucalense ser um nobre francês. Dentre estas características estão a cultura oral, as canções de gesta, a poesia romântica e as novelas de cavalaria (MEGIANE, 1995:33; ver também FRANCO Jr, 1990, cap. 2). Sem nenhum espanto encontramos o mito arturiano na bagagem destes nobres franceses que vão lutar em Portugal.
É neste contexto, da chegada do mito à França e posteriormente a Portugal (provavelmente século XIII [HERMANN, 1998:185; MEGIANE, 1995:39]) e da consolidação da cavalaria como instituição, que esta, e também as novelas (sobretudo a história do rei Artur, pois possui uma forte raiz pré-cristã) se cristianizam pelas mãos de monges como Robert de Boron (MEGIANE, 1995:39-40). Assim o Graal se transforma no Cálice Sagrado; Parsifal passa de homem e guerreiro comum para casto e ingênuo; Artur se transmuta no encoberto e por fim Galahad simboliza o desejado, homem perfeito e salvador. Temos assim o antigo mito pagão devidamente enformado na fé cristã e pronto para ser consumido por uma nobreza, sobretudo católica, ávida por aventuras. Aí está o segundo grande movimento.
Dado curioso que confirma a idéia de Joseph Campbell sobre a origem dos mitos é o de que durante a Baixa Idade Média, vê-se o aparecimento de “Reis encobertos”, na Europa, de caráter messiânico e salvacionista (MEGIANE, p. 18).
Podemos, então, avançar já dentro da história de Portugal, propriamente, ao identificarmos João de Barros<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> como o grande difusor deste mito entre a monarquia portuguesa já no final do século XV e início do XVI. Ao escrever em 1520 a Crônica do Imperador Clarimundo, o poeta João de Barros criou a versão portuguesa do mito arturiano. Com claras referências à Demanda do Graal (MEGIANE, pp. 49-50, 53-54), esta Crônica é utilizada na formação de sucessivas gerações de monarcas portugueses entre eles o jovem D. Sebastião. A obra teve papel decisivo na formação do caráter do futuro rei.
A segunda linha formadora do Sebastianismo é o Joaquinismo – termo utilizado para descrever as idéias do Monge Cisterciense Joaquim de Fiore (existem várias grafias para o mesmo nome) da região da Calábria, na Itália. Esta linha de pensamento, que definiremos a seguir, chega a Portugal provavelmente com os Franciscanos, tidos como “espirituais”.
O referido monge, nascido no ano de 1135, gozava já durante a sua permanência na Ordem de Cister de uma fama de “homem santo” e de idéias bastante controversas, assim sendo não demorou muito para que abandonasse a congregação e criasse sua própria Ordem (DELUMEAU, 1997:40). Estas idéias se baseavam principalmente em sua teoria dos tempos da cristandade: três idades do mundo correspondentes à trindade do cristianismo, o tempo do Pai, que teria começado antes da graça, com Adão, teve seu apogeu com Abraão e terminou com o nascimento de Cristo; o tempo do Filho, que é o da graça, inicia-se com o Rei Ozias, floresce com João Batista e Jesus e estaria próximo do fim, e o último dos tempos, o do Espírito Santo, que seria o da graça maior, teria começado com São Bento e frutificaria em breve com o retorno do profeta Elias e terminaria com o Juízo Final. É importante ressaltar que, no sentido radical das palavras, Joaquim de Fiore não é milenarista, porque não fala sobre a duração deste último período e nem é messianista, pois não fala sobre a volta do messias. Estes conceitos mudam constantemente na sua migração e são reinterpretados a cada nova escala. Ainda assim, Fiore fala sobre “um período de descanso da terra” (DELUMEAU, 1997:42-50)
As idéias de Joaquim de Fiore, seja com os Franciscanos, Dominicanos ou de outro modo, com certeza, chegam a Portugal e vão se juntar à massa formadora do Sebastianismo.
Tanto o Joaquimismo quanto o Messianismo judaico-cristão, que abordaremos em seguida, têm suas raízes nos textos bíblicos e na Torá, e a partir desta informação entramos no campo específico das religiões. Encontramos o judaísmo e o cristianismo como as duas religiões predominantes em Portugal, divisões do mesmo tronco teológico. São crenças predispostas ao milenarismo e ao messianismo. Para ambos,

“o mito escatológico (...) se diferencia dos demais pela pregação de uma purificação e não de uma nova concepção, e este paraíso devolvido não terá mais fim. O tempo circular da eterna destruição-reconstrução dá lugar ao tempo linear sem repetições. Além do mais, insere-se o componente messiânico articulado com o fim do mundo e a chegada do paraíso.”  (ELÍADE, s/d. p. 62).

Esta explicação de Elíade abre um campo de estudo bastante amplo e do qual tentaremos levantar alguns elementos importantes. No Antigo Testamento, parte comum das duas religiões, o número de referências messiânicas e milenaristas é muito grande. Entre as muitas podemos citar Amós, Oséias, Zacarias, Isaías, Ezequiel e Daniel, este último importantíssimo, pois é no seu livro que se interpreta o sonho do rei da Babilônia em que aparecem os cinco impérios ou tempos da humanidade, e sobre o último deles Daniel<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]--> diz:

“Mas, depois, se assentará o tribunal para lhe tirar o domínio [ao quarto império], para o destruir e o consumir até o fim. O reino, e o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos do Altíssimo; o seu reino será reino eterno, e todos os domínios o servirão e lhe obedecerão.”  Daniel 7:26 e 27.

Este texto será utilizado constantemente para comprovar a vinda do “quinto império”. Encontraremos esta referência até mesmo em Fernando Pessoa, no seu livro Mensagem. Outro texto cristão de grande importância é o Apocalipse² de João que descreve o Juízo final e o retorno do Messias:

“Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras cousas passaram. E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as cousas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras. Disse-me ainda: Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim.” Apocalipse 21:1b-6a.

È esse período de paz e prosperidade, que deverá suceder o tempo de juízo, dor e sofrimento descrito por Daniel, que leva os fiéis cristãos e judeus a acreditarem na chegada do Juízo final a cada nova crise, sobretudo na Baixa Idade Média. (ELÍADE, s/d. p. 63).
Talvez seja realmente difícil conseguir transmitir e imaginar a força que um texto desses tinha na mentalidade do homem medieval e as conseqüências que poderia causar, principalmente quando transmitidos de forma parcial, muitas vezes até quem sabe alterados.
Fundamental para a difusão destes textos é a Diáspora Judaica<!--[if !supportFootnotes]-->[3]<!--[endif]-->. Após a destruição de Jerusalém em 70 d.C., diversas levas de imigrantes judeus se fixaram em diversas regiões da Europa. Praticamente todo o continente recebeu mais ou menos semitas. Uma parte considerável deles se estabelece na Península Ibérica e leva consigo a sua cultura, que neste longo período de exílio constitui-se como elemento mantenedor da unidade do povo judeu. Separado pela distância, sua cultura e a preservação da mesma é o que garante a sobrevivência de uma identidade própria. Uma hipótese que se pode levantar é a de que este fracionamento do povo judaico, apesar da preservação cultural acima citada, cria vários grupos isolados e sem intercâmbio. Assim, o aparecimento de supostos messias – o que seria praticamente impossível em uma situação de unidade territorial – pôde se desenvolver nestas colônias e com endosso, por vezes, da própria comunidade (ELIADE, s/d. p.65). Ou seja, o aparecimento e a proliferação de falsos messias nas colônias judaicas da Europa foi favorecido pelo desmembramento provocado pela Diáspora.
Assim encontramos as três linhas principais e identificáveis que formaram o Sebastianismo em Portugal, o Arturianismo, o Joaquinismo e o Messianismo judaico-cristão –tradições diferentes que se fundem e dão origem a uma nova configuração.

1.3. O contexto histórico português
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Nesta seção veremos um pouco do contexto histórico português e europeu, pois o mesmo sofreu influência do que ia pela Europa afora. As condições encontradas em Portugal foram ideais para o surgimento e amadurecimento do mito messiânico posteriormente identificado com D. Sebastião, o Desejado.
Durante grande parte da Baixa Idade Média, a Europa viu-se afundada em crises. São sucessivas ondas de fome, pestes e guerras, que se manifestam sobretudo nos séculos XIV e XV. Isso constituiu-se um palco para o fortalecimento e reaparecimento de muitos mitos (ELÍADE, s/d. p. 161; MEGIANE, 1995:60). Como se não bastasse, desde o século XIII, seguem-se diversos levantes populares em várias regiões como Flandres, Toulouse, Kent, Paris, Gand, etc., bancos italianos vão à falência, o preço dos cereais cai, há uma ausência de metais preciosos essenciais para o comércio e caem conseqüentemente as arrecadações de impostos. Tudo isto leva a um êxodo urbano quase que generalizado. Esta situação de desespero leva as populações a buscar explicações e soluções divinas para a crise, encontrando assim o messianismo e o milenarismo espaço para crescer. Dado que atesta esta relação entre crise e escatologia é o de que não há evidências de surtos desta natureza na Europa antes do final do século XI (DELUMEAU, 1997:36, 73-76).
Este clima de incerteza e medo permeia quase toda a Baixa Idade Média e avança sobre a Idade Moderna (DELUMEAU, 1984:75; HERMANN, 1998:37). O descobrimento da América, em 1492, causou uma verdadeira revolução no imaginário europeu. A terra não se resume mais às regiões da Europa, Ásia e África. Este novo território necessita de uma explicação divina. Talvez seja o paraíso. Talvez seja o prenúncio do Juízo Final, já que o último recanto da terra havia sido conquistado pelo cristianismo (DELUMEAU, 1984:176).
Em Portugal crescem, durante todo o século XIV, as lendas em torno da figura de D. Afonso Henriques e a batalha de Ourique, assumindo a mesma cada vez mais um caráter divino (MEGIANE, p. 47). Isto não é um acidente, mas fruto de uma tentativa de divinizar a monarquia portuguesa. Assim, Portugal é o reino escolhido por Deus para comandar a cristandade em direção a um novo tempo (MEGIANE, pp. 48, 78-81; HERMANN, p. 24). Segundo Saraiva (s.d. p.58), “[a batalha de] Ourique serve a partir daí de argumento político: a intervenção pessoal de Deus era a prova de que a existência de um Portugal independente faz parte da ordem divina, e, portanto, eterna, do mundo.” Ou seja, Portugal deveria permanecer independente fossem quais fossem as circunstâncias, e a ausência de um herdeiro de carne e osso será campo fértil para o surgimento da crença em um retorno milagroso do “encoberto”, El-rei D. Sebastião.
Mas o Portugal do início do século XVI já não apresentava a mesma vitalidade que havia lhe proporcionado o papel de vanguarda do século anterior. Uma decadência econômica se instala obrigando o país até mesmo a abandonar antigas possessões na África (MEGIANE, 1995:86; HERMANN, 1998:29). Se isto já não bastasse para abalar o imaginário dos portugueses, a política de casamentos com a coroa de Castela e a unificação do trono espanhol deixa Portugal em uma constante situação de risco para sua independência (MEGIANE, 1995:88). Neste mesmo Portugal mantêm-se traços da medievalidade como o espírito cruzadístico e a identificação de um “Rei cavaleiro” convivendo com práticas modernas do antigo regime (HERMANN, 1998:34). Desta forma o desejo de retomar as possessões africanas e recuperar a glória do passado manuelino, a exortação à guerra e o espírito de cruzada se juntam formando uma “mistura explosiva” que será a tônica do reinado do desejado, D. Sebastião. Ainda neste período há um crescimento considerável da circulação de livros impressos e de versões populares da Bíblia, o que favorece a livre interpretação como já dissemos (HERMANN, 1998:35).
Enfim, o mito que futuramente se tornaria o Sebastianismo encontra o elemento que faltava; o sapateiro que colocasse no papel as idéias e as difundisse em um meio predisposto a aceitá-las. Gonçalo Annes, o Bandarra, representante da “cultura artesã apocalíptica” descrita por Jacqueline Hermann, é o elemento responsável pela transição e transmissão na esfera popular do messianismo, transitando entre cristãos novos e velhos. O ilustre sapateiro assimila diversos elementos de ambas culturas para redigir suas Trovas. Ao fazê-lo, também cumpre o papel de intermediador entre o oral e o escrito. O que antes era cultura oral passa a existir na forma escrita, ou seja, Bandarra é o grande mediador entre dois mundos: o cristão novo e o cristão velho, o oral e o escrito, o popular e o erudito (HERMANN, 1998:41, 46, 49, 121). Nas suas Trovas, Bandarra fala sobre três temas: a sociedade e a hierarquia quebrada, a esperança de um novo mundo e a atribuição a um rei português da missão salvadora (MEGIANE, 1995:30-31). E é este texto que circula entre o povo que tem o sapateiro como “profeta”.
Paralelo interessante de se traçar é entre Bandarra e João de Barros, de quem já falamos. Ambos falam de um Portugal imperial, terra de gente gloriosa e grandes conquistas, onde o rei é responsável pela realização da vontade divina. Apesar da natureza diversa das influências que os dois assimilaram para redigir seus textos o papel divulgador do mito é muito próximo:

João de Barros / Bandarra
Novelas de Cavalaria / Trovas
Nobreza / Povo
Erudito / Popular
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Graças a esta relação de diferentes esferas de divulgação do mito, mas de comunhão nos elementos e nas idealizações, pôde o messianismo–milenarismo, que depois se transformou em Sebastianismo, instalar-se no imaginário, tanto da “gente miúda,” quanto da nobreza portuguesa.
Por fim, o episódio do nascimento de D. Sebastião é bastante revelador. Sua chegada de uma forma quase que milagrosa afasta mais uma vez as pretensões castelhanas. Durante longas semanas forma-se em Portugal uma verdadeira corrente que, como Jacqueline Hermann diz, atribui-lhe o codinome de “O Desejado”. Criado em meio a disputas políticas acirradas o jovem rei recebe uma educação extremamente religiosa e assimila vários aspectos que formarão sua personalidade: o espírito cruzadístico, a misoginia, a obsessão pela retomada das possessões africanas – para que então Portugal pudesse retomar seu devido lugar. Enfim, é este caráter obsessivo, quase doentio, que leva o Desejado a perder sua vida e de certa forma a independência portuguesa na batalha de Alcácer-Quibir em 1578. Seu corpo jamais foi encontrado, pelo menos não para o povo português, que desde então identifica o jovem rei como o seu Messias, aquele que conduzirá Portugal ao seu destino divinamente traçado, a um período de felicidade, paz e prosperidade. Ou como diria Pessoa: “No mais é esperar por D. Sebastião, quer venha, quer não<!--[if !supportFootnotes]-->[4]<!--[endif]-->.”
CAPÍTULO II - D. Sebastião e o Sebastianismo


Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Neste capítulo, analisaremos as condições em Portugal se encontrava à época do nascimento de D. Sebastião e que fizeram com que o mesmo fosse identificado como o Encoberto, o Rei prometido que devolveria a Portugal sua glória perdida e que evitaria a união com a Espanha, união esta tão temida e indesejada por todos os portugueses e que, vez por outra, voltava a pairar sobre a nação lusitana. Após sua fatídica morte, surge a lenda de que ele voltaria em um dia de nevoeiro para assumir o trono português e pôr termo à dominação castelhana, reafirmando a soberania portuguesa e garantindo a Portugal o cumprimento de seu destino glorioso como o Quinto Império universal e trazendo o mundo todo, convertido então ao cristianismo, sob seu domínio.

2.1. A ÉPOCA DE D. SEBASTIÃO

            Neste tópico faremos um levantamento da época em D. Sebastião nasceu e reinou, um período em que o fantasma da União Ibérica estava a pairar sobre a nação portuguesa. Para além do problema da sucessão, havia a crise financeira, o declínio comercial e administrativo, a perda de várias possessões e o fim da grandeza manuelina. Basearemos nossa pesquisa nas obras de António Sérgio e José Hermano Saraiva.
            As dificuldades econômicas de Portugal acentuaram-se progressivamente desde os fins do reinado de D. Manuel até a perda da independência, em 1580. D. João III morreu a 11 de junho de 1557, deixando como herdeiro do trono seu neto, D. Sebastião. Aos 16 dias do mesmo mês D. Sebastião é aclamado rei. Tinha ele então três anos de idade. Foi a rainha viúva, D. Catarina de Áustria, quem ficou exercendo a regência do reino. O assunto foi submetido às Cortes (conselho administrativo), onde só os representantes populares fizeram objeções ao fato de a regente ser espanhola. Em 1562, D. Catarina renunciou à regência, que passou a ser exercida pelo único irmão de D. João III ainda vivo: o cardeal infante D. Henrique. O único filho de D. João III, D. João, pai de D. Sebastião, viera a falecer dezoito dias antes do nascimento deste em vinte de janeiro de 1554.
            D. Henrique exerce a regência até 1568, ano em que D. Sebastião fez quatorze anos –idade mínima para ser coroado – e começou a reinar. Ele tinha sido educado para reinar, isto é, tinha sido criado cultuando o heroísmo militar e o caráter quase divino do rei. Muito cedo se radicou nele a convicção de que Portugal seria o salvador da cristandade ameaçada pelos mouros do Norte da África e ele o instrumento dessa salvação. Essa obsessão acentuou-se com a idade. Durante os dez anos em que reinou sonhou com a luta contra os inimigos da fé. O pretexto para uma grande expedição guerreira surgiu em 1576, com a conquista do trono do Marrocos por um muçulmano apoiado pelos turcos. Segundo D. Sebastião, isso significava que o sultão da Turquia dominaria todo o Norte da África, o que seria fatal para a Península Ibérica e para toda a Europa cristã. (SÉRGIO, 1993:103, 104).
           
2.2. Educação do herdeiro real

D. Sebastião recebeu uma educação sem grandes restrições ou freios, uma vez que cedo foi entregue ao cuidado dos avós, que rapidamente se tornaram incapazes de seguir o ritmo alucinante do jovem que traçava seu próprio caminho. Era ele de um temperamento e humor variáveis, sujeito a períodos de grande depressão.
Todo o ambiente que envolveu D. Sebastião na infância foi um ambiente de grande religiosidade, apologista de uma constante submissão à vontade divina. Daí que tomasse, para ele, tamanha importância o combate contra os inimigos da Fé. Foi este motivo, associado à ambição de seguir os feitos heróicos dos seus antepassados, que o levou a aventurar-se pelas terras da África.
Na corte, procurou-se proporcionar uma instrução essencialmente humanística, bem como despertar um profundo sentimento de honra e dever. É ainda de destacar o intenso exercício físico que fez de D. Sebastião um grande cavaleiro, toureiro e montador de porcos.
O problema dinástico esteve presente ao longo de toda a sua vida. Na verdade, foram várias as tentativas de encontrar noiva para o rei. No entanto, apesar de D. Sebastião se ter ocupado deste assunto, nunca o solucionou, o que proporcionou muitas especulações. (SÉRGIO, 1993:106).
Muitos consideram o temperamento de D. Sebastião prenúncio de loucura. De acordo com SARAIVA (s/d. p.167), há autores, no entanto, que se insurgem contra este retrato que se generalizou de D. Sebastião e que o relegou para o número dos degenerados e loucos. Afirmam que, para perceber a figura verdadeira do monarca, é preciso conhecer bem os meandros da política do seu tempo. Vários partidos disputavam a sua tutoria e as chancelas do governo. Quanto ao fato de o rei não escutar toda a gente, mas dar ouvidos apenas a quem lhe parecia útil consultar, não é de estranhar se pensarmos que a mãe se afastou dele após o seu nascimento, por razões políticas, e recordarmos o papel que a rainha, sua avó, desempenhava na política portuguesa. No que diz respeito à tenacidade de D. Sebastião e à confiança que tinha em si próprio, talvez estes não sejam sinais de qualquer inferioridade, atestando sim a sua superior envergadura moral.

2.3. A batalha fatídica

D. Sebastião vai dando forma ao seu desejo de fazer uma expedição à África e qualquer tentativa de o dissuadir fracassa. Não aceitava palavras de aviso, nem encarava a realidade e a verdade como o eram. Desprezava os velhos e os prudentes. Apesar de D. Catarina, D. Henrique e as Cortes não apoiarem os seus propósitos guerreiros, D. Sebastião viu-se rodeado de um grupo de jovens que, envolvidos pelo seu exemplo de coragem, empenhou-se ao máximo nesta expedição. Entretanto, os recursos financeiros foram sendo reunidos, o Papa aprovou a expedição. Enfim, todo o panorama se afigurou favorável e D. Sebastião avançou. Deu-se início a uma expedição que surpreendeu pelo luxo que emanava, como se se tratasse de uma autêntica festa.
Em 1578, então com vinte e quatro anos, D. Sebastião embarca para a África com todas as forças que conseguiu reunir: cerca de dezessete mil combatentes, dos quais cinco mil eram mercenários estrangeiros (SARAIVA, s/d. p.169). Recusando-se a ouvir os conselhos dos capitães experimentados nas guerras africanas, afastou-se da Costa e dirigiu-se ao encontro do exército do rei de Marrocos, que encontrou nas proximidades de Alcácer-Quibir. A batalha terminou como um enorme desastre. Metade dos soldados foi morta, a outra metade aprisionada. O próprio rei morreu, assumindo o trono o cardeal e inquisidor-mor D. Henrique, então com sessenta anos. O rei estava adoentado e a probabilidade de vir a ter descendentes era nula. Com sua morte em 1580, a coroa portuguesa passa para um dos netos de D. Manuel,   - bisavô de D. Sebastião – Filipe II, soberano da Espanha, tio de D. Sebastião.
A batalha travou-se perto de Alcácer-Quibir a 4 de Agosto de 1578. Se a princípio a batalha pareceu quase ganha, o que dela resultou foi uma estrondosa derrota que abalou a monarquia portuguesa. D. Sebastião lutou ferozmente até a fim. Diz-se mesmo que se fosse tão bom chefe militar como soldado, a batalha teria, certamente, sido vencida pelos portugueses (SARAIVA, s/d. p. 173).
Foi perto de um rio que D. Sebastião foi encontrado morto, sem que ninguém saiba ao certo como morreu. Por esta razão, muitos desconfiaram da veracidade da sua morte. O rei, que havia nascido desejado por todo um povo, – pois D. João III já estava velho e seu único filho, D. João, veio a falecer antes do nascimento de D. Sebastião, como já dissemos, portanto D. Sebastião era a garantia de que a coroa não passaria para os espanhóis – era agora esperado por este, depois de desaparecido. Deste modo, a figura de D. Sebastião está muita associada às vivências de um povo, à sua fé e ao seu desejo de construir um futuro melhor (SÉRGIO, 1993:107).

2.4. O mito


Compreender o Sebastianismo implica considerar dois fatos distintos: a esperança na vinda de um rei predestinado e as aspirações ao que ele havia de realizar, que existiam mesmo antes de surgir D. Sebastião. O seu primeiro intérprete foi Gonçalo Anes, mais conhecido por Bandarra, o sapateiro de Trancoso, com as suas Trovas consideradas o "evangelho" do Sebastianismo.
O simples sapateiro maravilhava a todos pelo conhecimento da Sagrada Escritura e aos seus ouvintes parecia um respeitado teólogo. Lia e escrevia – o que para o seu tempo é quase excepcional.
É, pois, da Bíblia que o vidente tira o essencial da matéria das suas predições, o que explica a sua popularidade entre os cristãos novos, que aguardavam a vinda do Messias. Isto, junto com vaticínios vindos da Espanha e ainda resíduos de lendas do ciclo arturiano conservadas na tradição popular, faz brotar o Sebastianismo, como já dissemos.
Num ambiente em que a cabalística penetrava no cristianismo e a alquimia, a magia e a astrologia eram ainda tidas como ciências exatas, Bandarra e os seus vaticínios floresceram. As Trovas corriam de mão em mão, até caírem nas de Afonso de Medina, desembargador da Mesa da Consciência, o que justificou a prisão do sapateiro de Trancoso, cujo livro de profecias foi proibido, mas não conseguiram fazer com que o povo deixasse de ler suas trovas.
O fato é que, se por um lado os cristãos novos não abandonavam as suas esperanças, por outro, o messianismo ia passando por contágio aos cristãos velhos e pouco a pouco se foram incrustando na consciência nacional as idéias aparentes nas trovas. E eis que, no ano de 1554, nasce D. Sebastião, para uns o filho da casa de Davi, para outros o rei Desejado, legitimando, em qualquer dos casos, a designação de profeta conferida a Bandarra (HERMANN, 1998:48).
O que ninguém previu foi a notícia que chegou ao reino em Agosto de 1578: o rei predestinado morrera na batalha de Alcácer Quibir. Crônicas da época relatam-nos os prantos, a estupefação e o desespero de um povo que não queria acreditar na terrível catástrofe. De fato, o contraste entre a mocidade de D. Sebastião, a crença de que era invulnerável aos perigos e o desastre que tinha acontecido dava a Lisboa um ar fúnebre. Para além da incerteza da sua sucessão. (SARAIVA, s/d. p. 169).

2.5. D. Sebastião, o Encoberto

Logo, porém, a reflexão vem em auxílio do povo português: e as profecias? Quem fará grande a Pátria e edificará o Quinto Império? Surge, então, um boato, dia a dia avolumado, de que o rei vinha na frota que regressara de Marrocos, mas disfarçado e escondido, com vergonha da derrota. O rei nascido do milagre não podia sucumbir assim. Morreu Portugal, na verdade? Não morreu, porque o seu símbolo vivo não morreu também. Divulga-se, então, a convicção de se achar o monarca vivo e salvo. D. João de Castro, o futuro apóstolo do Sebastianismo, embebido no estudo das profecias, crê que havia de ser D. Sebastião o Encoberto, imperador do Mundo e que estaria, portanto, vivo e andaria a peregrinar por terras longínquas. Segundo outros, o rei estaria preso, no Marrocos ou na Espanha. Chegou a falar-se de uma ilha onde se encobrira D. Sebastião, a dar tempo ao tempo. Simultaneamente, assiste-se ao inconsciente transmudar da sua personalidade histórica para figura transcendente. Lá vivia, em penitência, e de lá viria para realizar a monarquia universal de Cristo. Ele seria o braço armado da Igreja Romana (HERMANN, 1998:50).
O mito propagou-se, alimentado por visões e profecias. Os fiéis iam freqüentemente ver se conseguiam avistar a chegada do messias, que viria da sua ilha deserta, montado num cavalo branco, numa manhã de nevoeiro, com o intuito de salvar Portugal da opressão.
Aproveitando-se desta crença, alguns impostores surgiram aqui e além, pretendendo ser D. Sebastião e vir salvar Portugal. Contudo, não foi difícil à justiça desmascará-los e executá-los sem demora no cadafalso. Contudo, o Sebastianismo não assumiu a categoria de religião, porque o espírito português não o permitiu. A forte oposição do catolicismo constituiu igualmente um obstáculo. D. Sebastião manteve, então, o estatuto de herói, um cristo nacional que não ascendeu a Deus (MEGIANI, 1995:63).
Nas décadas de 1620 e 1630, muitos começaram a identificar o esperado D. Sebastião com algum corpo mais visível, que não era outro senão o duque de Bragança, coroado posteriormente como D. João IV, seu herdeiro legítimo. Transfere-se o sonho para a realidade política e o Sebastianismo evolui para simples Patriotismo: sebastianistas são os opositores da União Ibérica. Quando a crença se associa a patriotismo e ainda conforta a dor, como a dos portugueses sob o jugo dos castelhanos, então a credulidade não conhece distinções de classes: um fenômeno impossível aos olhos da Razão, como a sobrevivência do rei D. Sebastião, encontra fácil assentimento, ainda que nos mais cultos entendimentos.
Segundo José H. Saraiva, o melhor expoente do Sebastianismo erudito foi o padre António Vieira, que procurou nas trovas de Bandarra argumentos para o seu grandioso projeto de um império universal, no qual judeus e cristãos aparecem reunidos numa Igreja nova e purificada dos antigos pecados. O imperador seria D. João IV, porque isso resultava necessariamente, pensava Vieira, das trovas do Bandarra. Contudo, D. João IV morreu sem que a profecia se tivesse realizado. A certeza de Vieira era tão forte que, dessa morte, só tirou uma conclusão – D. João IV iria ressuscitar para que a profecia se cumprisse.

2.6. O MITO NA literatura


Para o povo, D. Sebastião não morreu: apenas desapareceu. Esse vazio provocado pelo seu desaparecimento determina a esperança no seu regresso. D. Sebastião torna-se, assim, o desejo encoberto da alma de um povo. Este desejo encontra eco, não só no sentimento e pensamento popular, mas também na Poesia e Literatura em geral. D. Sebastião é lenda que consta da História e o seu autor é marcadamente o Povo.
Em primeiro lugar, o mito do Sebastianismo preenche o vago sentimento saudoso dos Lusíadas, atribuindo-lhe também uma dimensão religiosa e patriótica. A saudade é, deste modo, extremamente explorada, atingindo o seu expoente máximo de expressão em Camões e Frei Agostinho da Cruz. Do mesmo modo, o Padre Antônio Vieira dedica o seu primeiro sermão, que versa sobre ideais sebastianistas, a D. Sebastião. Sonha com um novo Império: o quinto e último império.
Porém, com o tempo, o ideal do Quinto Império adormece e a chama da alma portuguesa, que ardia por D. Sebastião, é apagada pelo vento dos séculos. Bocage será o primeiro a caminhar numa outra direção, a delinear uma nova aspiração, a jeito de grito de liberdade. Grito que marca, enfim, o abrandamento do Sebastianismo pela afirmação do liberalismo francês.
Ainda assim, o magma indiferenciado do Sebastianismo toma novamente vida algum tempo depois, verificando-se a sua primeira erupção no drama "Frei Luís de Sousa", autêntica tragédia sebastianista. Dá-se, portanto, o reacender da chama da alma saudosa dos Lusíadas. O fatalismo, a gravidade, a tristeza e a candura denunciam a envolvência do Encoberto. É quase como se se conseguisse ouvir, verdadeiramente, o choro do povo, o palpitar dos seus corações e se pudesse sentir a sua dor.
Alexandre Herculano, Garrett e Soares de Passos transmitirão, igualmente, o grito contido da alma da pátria que agora renasce. O mesmo acontece com alguns poemas de autores portugueses, demonstrativos da influência do mito sebastianista na Literatura e, muito em especial, na Poesia, como é o caso de A Última Nau, de Fernando Pessoa, O Encoberto, de Affonso Lopes Vieira e D. Sebastião, de Miguel Torga.


CAPÍTULO III – O Sebastianismo NA OBRA DE JOSÉ LINS DO REGO
O presente capítulo encarregar-se-á de uma análise da presença do mito Sebastianista na Literatura Brasileira, como manifestada na obra do escritor paraibano José Lins do Rego, mais especificamente em Pedra Bonita (1938). Começaremos com uma contextualização de autor e obra, para depois fazermos algumas considerações sobre o conteúdo Sebastianista do romance Pedra Bonita.
3.1. Vida e obra do autor
3.1.1. DADOS BIOGRÁFICOS

José Lins do Rego Cavalcanti nasceu no município de Pilar, Estado da Paraíba, no ano de 1901 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1957. Criado no engenho Corredor, de propriedade do avô materno, fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa), vindo a se formar em Direito, no Recife, no ano de 1918. Foi também no Recife que veio a conhecer intelectuais como Gilberto Freire, José Américo de Almeida e Olívio Montenegro. Tempos depois conheceria em Maceió dois grandes nomes da literatura de seu tempo: Jorge de Lima e Graciliano Ramos. Exerceu o cargo de promotor público em Manhaçu (MG).
Publicava, desde sua tenra juventude, artigos em suplementos literários, passando após algum tempo a escrever romances. Seu primeiro livro foi publicado em 1932: Menino de Engenho, custeado com dinheiro do próprio bolso, e que atingiu enorme repercussão, abrindo caminho para uma série de obras de grande importância em nossa literatura. José Lins do Rego acabou se mudando em 1935 para o Rio de Janeiro, cidade na qual viveria até a morte. Consagrado como o grande escritor regionalista brasileiro ao lado de Graciliano Ramos, foi nomeado como membro da Academia Brasileira de Letras no ano de 1956.

3.1.2. CICLOS LITERÁRIOS

Detentora de um profundo lirismo, uma linguagem cheia de vocábulos regionais, dignas de quem conviveu de perto com a região e o povo descrito em sua obra, e uma narrativa com uma forte inspiração na literatura de cordel, dando ênfase à oralidade, a obra de José Lins do Rego tem como alvo a região nordestina brasileira do fim do século XIX e início do século XX, onde são visíveis a decadência da sociedade patriarcal e a transição dos já obsoletos engenhos de cana-de-açúcar para as poderosas usinas.
Neto de um poderoso senhor de engenho, José Lins do Rego conviveu com essa transição econômica e cultural por toda a sua juventude, o que concede à sua obra um tom de biografia que se estende desde o seu primeiro livro: Menino de Engenho. A mecanização que assombra e derruba engenhos da Zona da Mata Nordestina, acabando com engenhos e colocando um fim na mão-de-obra de ex-escravos, é somente uma das facetas da obra do escritor paraibano, que explora e descreve toda a tradição, o folclore e o misticismo daquele povo sofrido, criando personagens muitas vezes inspirados na realidade, como a imagem de seu próprio avô, que deu origem ao personagem Coronel José Paulino.
Criou também tipos inesquecíveis, como a figura quixotesca do Capitão Vitorino em Fogo Morto.  Prendendo-se muitas vezes numa análise psicológica de cada personagem, José Lins mostra a família patriarcal, que se torna o próprio retrato do declínio. A vida do patrão e de sua mulher submissa consiste em assistir, na maioria das vezes sem reação, o fim do engenho e de suas vidas. Em contraponto, temos a vida simples e problemática, o trabalho duro e a miséria dos empregados e moradores do engenho, em sua maioria descendentes de escravos. A convivência entre ricos e pobres é muitas vezes conflituosa, servindo para denunciar a desigualdade social, bem como certas picaretagens políticas. É o que o próprio autor intitulou de ciclo da cana-de-açúcar, encaixando-se nele as seguintes obras: Menino de Engenho, Doidinho, Bangüê, Fogo Morto e Usina.
A figura dos cangaceiros e os árduos combates que estes travavam com a polícia local também estão presentes, denunciando não somente o terror do cangaço que se alastrava pela região, às vezes sob a forma de lendas e histórias, como também o abuso de autoridade que a polícia nordestina empregava nas inúmeras buscas que empreendia, fazendo-nos repensar sobre quem eram realmente os bandidos e quem eram os heróis. Apesar do cangaço estar presente em quase toda a sua obra, alguns de seus livros o retratam com maior ênfase. É o chamado ciclo do cangaço, misticismo e seca: onde estão as obras Pedra Bonita e Cangaceiros.
José Lins do Rego escreveu ainda alguns livros que poderiam encaixar-se perfeitamente nos dois ciclos anteriores, ou em nenhum deles. São as suas chamadas obras independentes: O Moleque Ricardo, Pureza, Riacho Doce, Água-mãe e Eurídice, além de um livro de memórias intitulado Meus Verdes Anos, onde o autor funde fatos comuns de sua infância com lugares e personagens presentes em alguns de seus livros, principalmente de Menino de Engenho.

3.1.3. PRINCIPAIS OBRAS

Romance
Menino de Engenho (1932); Doidinho (1933); Bangüê (1934); O Moleque Ricardo (1935); Usina (1936); Pureza (1937); Pedra Bonita (1938); Riacho Doce (1939); Água-mãe (1941); Fogo Morto (1943); Eurídice (1947); Cangaceiros (1953).

Memórias
Meus Verdes Anos (1953).

Literatura Infantil
Histórias da Velha Totonha (1936).

Crônicas
Gordos e Magros (1942); Poesia e Vida (1945); Homens, Seres e Coisas (1952); A Casa e o Homem (1954); Presença do Nordeste na Literatura Brasileira (1957); O Vulcão e a Fonte (1958); Dias Idos e Vividos (1981).

3.2. O ROMANCE PEDRA BONITA ou PEDRA DO REINO
            Pertencente ao assim chamado “ciclo do cangaço, misticismo e seca,” Pedra Bonita foi publicado pela primeira vez em 1938. O tema central é o fanatismo religioso e o misticismo no Nordeste, sentimento inspirado no messianismo judaico e a esperança da vinda de dias melhores através de um “messias” salvador que viria de forma extraordinária e na crença no mito Sebastianista, difundido entre nós através de folhetos de literatura de cordel.
            O romance está divido em duas partes. A primeira tem como título “A Vila do Açu” e divide-se em dez capítulos. Esta primeira parte descreve a Vila do Açu, povoamento vizinho à Pedra Bonita, com seus habitantes, as velhas beatas, a influência do Padre em questões administrativas e políticas, os sertanejos, simples e crédulos; enfim, a mesmice de uma localidade do interior em princípios do século XX.
            Nesta parte temos a narração de como Bento (o personagem principal, Antônio Bento Vieira, criado do padre Amâncio) veio parar na Vila do Açu, deixado pela mãe na grande seca de 1904. Sua família vive em um sítio próximo à Pedra, e somente a mãe vem esporadicamente visitá-lo no Açu, onde todos culpam a Pedra Bonita e a tragédia de 1838 pelo atraso no desenvolvimento da vila, mas ninguém tem coragem de falar abertamente sobre o que aconteceu lá, fazendo apenas vagas alusões, o que só aumenta a curiosidade de Bento.
            O pano de fundo é o episódio histórico da Pedra Bonita em 1838. A história se passa por volta de 1920. Contudo, quem pensar que José Lins do Rego apenas reconta o triste episódio, enganar-se-á. O ocorrido de 1838 permeia todo o texto, mas Lins do Rego cria uma narrativa surpreendente e intrigante, na qual o acontecido aparece sempre como uma sombra perseguidora, uma espécie de maldição da qual ninguém ali pode escapar.
            Nesta primeira parte temos também a narração de várias ações dos cangaceiros e as tentativas frustradas das milícias para pôr fim ao terror difundido por esses fora-da-lei do sertão brasileiro, meio heróis meio vilões, terminando com a ida de Padre Amâncio para o Recife. Antes de partir, o padre manda Bento ficar com a família na Pedra Bonita até sua volta. Diz o padre:
“O bispo de Pesqueira quer que eu o acompanhe na visita pastoral deste ano. ... você deve ir passar esse tempo com o seu povo da Pedra Bonita. É a sua gente. Você precisa estar com eles<!--[if !supportFootnotes]-->[6]<!--[endif]-->.”
            A segunda parte do livro entitula-se Pedra Bonita. É composta de dezoito capítulos. No primeiro, temos a descrição da propriedade do pai de Bento, ao pé da Serra do Araticum, da qual o sítio tomava o nome, um local com nascente que só deixava de correr “nas secas violentas.” Lá Bento encontrará o pai, o velho Bentão, homem “alto e magro, de barba rala, deixada ao tempo, de olhar duro de gavião, e calado, furiosamente calado, como se o uso da palavra o constrangesse.”
            Devido ao hermetismo do pai, pouquíssimo ou nulo será o contato de Bento com ele. Encontrará aí também a mãe, Sinhá Josefina, mulher “do mesmo sangue de seu marido.” Há também os dois irmãos mais velhos, Aparício e Domício. Rapidamente Bento vai se acostumando à nova vida e faz uma amizade mais estreita com Domício, quem o leva para conhecer diversos lugares da região. Após muita hesitação, Domício concorda em levar Bento até a Pedra Bonita, o local do massacre de 1938. Finalmente Bento poderá saber qual é o crime que pesa sobre o povo da Pedra e pelo qual ainda estavam pagando. Lá Bento fica sabendo que foi um de seus antepassados que traiu o Santo indo buscar os soldados que o mataram e que há uma maldição sobre sua família, e que todos de sua casa estão condenados a morrer, pagando pelo sangue do Santo traído. Raça de Judas, traidores. Poderíamos até dizer que esse é um momento clímax do romance, pois a partir daí nem Bento nem Domício serão mais os mesmos.
            Pouco tempo depois Aparício acaba entrando para o cangaço, e Bento e sua família passam a sofrer retaliações das milícias. Com a volta de padre Amâncio, Bento retorna para a Vila do Açu, onde não consegue deixar de pensar sobre o episódio da Pedra. E então chega a notícia:
“tinha aparecido um santo na Pedra Bonita. Era um homem barbado, de cajado na mão, com um cavalo branco que fazia milagre. Já havia muita gente descendo para a  Pedra. O velho Zé Pedro dizia ao povo que aquele era mesmo um enviado do Filho que há cem anos dera o sangue pelo povo.” (p. 204)
            O aparecimento de um novo Santo na Pedra, como há cem anos, vai mexer profundamente com a Vila do Açu e principalmente com Bento e sua família, os Vieiras, os Judas, os traidores. Enquanto isso padre Amâncio fica mais e mais doente a cada dia. E a fama do Santo da Pedra aumentando a cada dia. Famílias inteiras de romeiros que passavam em direção à Pedra, levando doentes para o Santo curar. Padre Amâncio resolve que precisa deter o curso dos acontecimentos e evitar uma tragédia como a de cem anos atrás. Sua ida à Pedra, porém, é um fracasso total. O povo enfurecido, ao pensar que ele fora lá para expulsar o Santo, quase o mata. Quem o salva (e a Bento, quem o acompanhava) é Domício, transformado em beato e líder da multidão de fanáticos. O pai e a mãe de Bento também estavam morando ali na Pedra com o Santo agora. Desde o dia do confronto na Pedra, o padre não se levanta mais da rede, definhando aos poucos. Como a situação da Pedra se agravasse constantemente, e após um tenente das milícias e seus soldados serem mortos pelos fanáticos, o Governo Estadual resolve mandar um major com mais de duzentos soldados mais os voluntários da Vila do Açu e redondezas.
            Na noite anterior ao assalto da tropa à Pedra, padre Amâncio pede a Bento que vá até Dores, a cidade mais próxima, para chamar o padre de lá, para que padre Amâncio se confessasse. Bento, ao chegar uma encruzilhada que ia para Dores e para a Pedra Bonita, pára e começa a pensar em sua situação: odiado de todos na Vila do Açu, o padre morria, sua gente lá na Pedra com o Santo. Então Bento decide ir para a Pedra e dar aviso do ataque que viria ao amanhecer, para que não fossem pegos de surpresa pela tropa e pudessem se defender. E aí termina a estória, com um Vieira expiando a culpa de sua gente, fazendo exatamente o contrário do que fez seu antepassado.
3.3 Tragédia Sebastianista
            Neste tópico faremos um levantamento histórico do que foi o movimento do Reino Encantado da Pedra Bonita, movimento que serviu de base para a obra de Lins do Rego, ocorrido no sertão de Pernambuco entre 1836 e 1838.
Em nome de Dom Sebastião, profetas autoproclamados formaram comunidades que aguardavam a sua ressurreição. Os adeptos deste movimento esperavam a ressurreição do rei sob a crença de que os pobres seriam ricos, os negros seriam brancos, os velhos seriam jovens, e todos seriam belos e felizes. A crença na ressurreição de D. Sebastião foi o marco inicial para dois grandes movimentos messiânicos registrados no país, no século passado<!--[if !supportFootnotes]-->[7]<!--[endif]-->: o do RODEADOR (PE - 1819), e o do REINO ENCANTADO DA PEDRA BONITA (PE - 1836-1838).
Em 1836, um sertanejo da região de Vila Bela, João Antônio Vieira dos Santos, apareceu na cidade de Flores de forma especial. Portava um folheto de Cordel e duas pedras preciosas, dizendo tê-las encontrado na Lagoa Encantada, situada na área da Pedra Bonita. O folheto funcionava como uma bíblia sebastianista e as pedras, como um objeto mágico-encantado para atrair a atenção da população. Através disso João consegue casar-se com Maria, moça que lhe fora negada por seus pais e consegue angariar dinheiro e demais riquezas, prometendo que estas seriam pagas quando o reino desencantasse após a vinda de D. Sebastião.
Em suas pregações, era auxiliado por todos os membros de sua família e outros adeptos, que percorriam as áreas circunvizinhas da região. Instalava-se assim, o Primeiro Reinado da Pedra Bonita, reinado este que foi marcado por pregações fanáticas e idéias socialistas. O sofrimento desses visionários e o ódio contra o poder e a propriedade privada desencadearam a rivalidade da Igreja Católica e dos proprietários locais que através do Padre Francisco Correia de Albuquerque conseguiram persuadir o Rei João Antônio a abandonar a região e a fugir para o Ceará.
Acredita-se que, mesmo à distância, João Antônio orientava a população e mantinha vivas as propostas do movimento. Dois anos mais tarde o movimento ressurgiu com força através de seu cunhado João Ferreira, o qual introduziu componentes litúrgicos e morais, transformando-o em uma seita, obrigando a toda a comunidade a tratá-lo como Rei ou Santo, e a beijar-lhe os pés. Ocorriam constantemente crimes e várias barbaridades praticadas pelo chefe. Dizia ele ter autorização de D. Sebastião para dormir com qualquer mulher da comunidade, e toda jovem que se casasse dormiria a primeira noite com o rei.
João Ferreira era tratado como rei e seus “súditos” acreditavam que D. Sebastião estava encantado nas duas grandes pedras (dois enormes rochedos que funcionavam como santuário - um de 30 e outro de 33 metros de altura; Pedra do Reino, a 30 km do atual município de São José do Belmonte - PE), que ali havia, e uma outra rocha menor era usada como mesa do holocausto. As reuniões aconteciam freqüentemente no alto da Serra do Catolé. Vivendo nos moldes de um reinado, João Ferreira fazia pregações e mantinha o controle de todos os hábitos e atos dos seus seguidores, impondo as regras em nome de D. Sebastião. A cada pregação o número de seguidores aumentava. A comunidade era formada por aproximadamente 300 pessoas, entre homens, mulheres e crianças e tinha alguns hábitos e normas peculiares. Os homens podiam casar-se com várias mulheres, a higiene pessoal não era permitida, nem a lavagem de roupa e o trabalho eram necessários; também comiam pouco, bebiam em abundância o vinho sagrado, rezavam e dançavam esperando o grande acontecimento: a vinda de D. Sebastião. No dia 14 de maio de 1838, após terem todos tomado bastante vinho, é-lhes comunicado que D. Sebastião estava em profundo desgosto para com eles, pois eram homens incrédulos, fracos e falsos e não tinham coragem de regar o campo encantado, nem de lavar as duas torres da catedral do reino, com o sangue necessário para quebrar o encantamento e dar a todos uma oportunidade de vida melhor.
Muitas pessoas foram sacrificadas e seu sangue lavava as pedras para a purificação dos seus seguidores, seguindo-se a dizimação de cães, homens, mulheres e crianças, até mesmo as de colo, através da degola, esfacelamento ou atirando-se do alto ao solo. O sacrifício dos cães estava correlacionado com idéias de ressurreição e socialismo. Estes deveriam ressuscitar como valentes dragões para devorar os proprietários de terras. Em 17 de maio os fanáticos aceitam imolar o próprio Rei João Ferreira, por influência de seu cunhado Pedro Antônio, por causa da morte de suas duas irmãs, acusando-o de falso soberano e convencendo a população a matá-lo, sendo que sua morte ultrapassou as demais em requintes de violência. As pessoas foram obrigadas a quebrar-lhe a cabeça e a fazer muitas brutalidades com o mesmo.
Consagrando-se como terceiro e último Rei, Pedro Antônio reina por apenas um dia. A primeira providência tomada pelo novo Rei é a transferência do acampamento para outro local, em conseqüência da decomposição dos corpos que haviam sido sacrificados em nome de Dom Sebastião, que somavam 53 corpos humanos, sendo 30 crianças, 11 mulheres, 12 homens e mais os corpos de 14 cães.
Neste mesmo dia um vaqueiro de nome José Gomes Vieira, que participou das comemorações iniciais e presenciou este eloqüente episódio, foge e vai transmitir o episódio a seu patrão Major Manuel Pereira, respeitado proprietário de terras. Este se juntando com seus irmãos e alguns outros fazendeiros parte ao local dos sacrifícios. O rei Pedro Antônio e seus adeptos enfurecidos, armados de facões, cacetes e espetos, recebem as tropas gritando “Não tememos. Acudam-nos as tropas do nosso reino!” Este grito de guerra eclodia na imensidão daquele sertão, levado ao vento e misturava-se entre cânticos de ladainhas, benditos e ofícios, que eram entoados por mulheres e crianças que batiam palmas e ajudavam no combate. O confronto mostrava-se em desigualdade, o número de adeptos sebastianistas era bem maior do que a tropa comandada pelo Major Manuel. Neste confronto morreram mais 30 pessoas,  entre soldados e fanáticos, finalizando assim este movimento que pode ser considerado como o mais trágico e sangrento dos movimentos messiânico-sebastianistas brasileiros.
            Ariano Suassuna, em seu Romance d’A Pedra do Reino, descreve nestes termos a assalto da tropa ao Reino Encantado da Pedra Bonita<!--[if !supportFootnotes]-->[8]<!--[endif]-->:
Inclinava-se, portanto, o Quarto Império que, como já disse durou somente um dia, mas teve a vantagem de revelar ao Brasil quem foi seu verdadeiro e real Dom Pedro I, o nosso, e não aquele Português debochado da Casa de Bragança. (...) Chegamos, então, ao trecho mais epopéico, bandeiroso e cavaliriano da história da Pedra do Reino. Digo isso porque é agora que aparecem os Cavaleiros sertanejos, comandados pelo Capitão-Mor Manuel Pereira, Senhor do Pajeú, todos galopando em cavalos, armados de espadas reluzentes e arcabuzes tauxiados de prata, na sua expedição punitiva contra os Reis castanhos e Profetas da Pedra do Reino. (...)
O Comandante Manuel Pereira passou a noite de 17 de Maio reunindo sua tropa de Cavaleiros, de modo que já se achava em marcha para a "Serra do Reino", quando "a aurora do dia 18 de Maio começava a derramar sua roseada luz sobre as águas prateadas do Riacho Belém", como diz Souza Leite em seu puro estilo epopéico. E ele continua, contando como a tropa, guiada pelo traidor, descobriu o melhor caminho de acesso, galgando a Serra, passando pelos espinheiros e cactos espinhosos e por fim cruzando um altíssimo capinzal: "No momento, porém, em que os Pereiras, como os Soldados que os seguiam, se aproximavam das capoeiras, e se dirigiam para aqueles Umbuzeiros, acharam-se face a face com El-Rei Dom Pedro Antonio, o qual com uma grande Coroa na cabeça, acompanhado de um séquito numeroso de mulheres, meninos e homens armados de facões e cacetes. - 'Não os tememos! Acudam-nos as tropas do nosso Reino! Viva    El-Rei Dom Sebastião!' - assim exclamou Pedro Antonio, agitando no ar a sua Coroa e arremessando-se furioso, com todos os seus, sobre aquele punhado de Cavaleiros. Foi horrível o que resultou do encontro das duas forças: sobre o Campo do combate ficaram inúmeros cadáveres, sendo um o do Rei Pedro Antonio. (...) Folheto IX (p. 46)

3.4. TRECHOS DE PEDRA BONITA SOBRE A TRAGÉDIA SEBASTIANISTA DE 1838
         Na primeira parte do romance temos apenas alusões obscuras sobre o episódio da Pedra Bonita, já que na Vila do Açu ninguém tem coragem nem de falar sobre o que aconteceu. É na segunda parte, quando Bento vai para a casa dos pais na serra do Araticum, próximo à Pedra, sendo finalmente levado até lá por Domício que temos trechos significativos sobre o ocorrido.
            A partir da página 137 temos o relato que Lins do Rego faz do episódio de 1838, contado através das palavras do velho Zé Pedro. É interessante notar o impacto que o relato causa em Bento. Ao longo da narrativa, o relato do velho não sairá mais da cabeça de Bento, e o levará a tomar a decisão mais importante de toda sua vida.
A história ... tinha coisas medonhas. Um homem, que era mesmo que Deus, um tal de Ferreira, manobrando com sangue de gente e de bicho. Fazendo e prometendo um novo mundo para o povo. ... Um grande vale apareceu à vista de Bento. ... E mato, muito mato. Para um canto estavam as duas pedras gigantes. ... O vale se estendia até longe. As pedras, no fundo, quase na encosta da serra, como duas guardas ... se distinguiam no meio de tudo. ...
Antonio Bento estava como se tivesse caído num reino encantado. Era ali a Pedra Bonita. O sangue dos inocentes correra por aquelas terras e diziam no Açu que a terra secara ... Não era verdade. ... Foram andando. A casa de Zé Pedro ficava no meio da mataria. ... O velho Zé Pedro olhou para eles, chegou-se bem para perto, sondou, examinou: - Mas tu não sabia de nada da Pedra Bonita? Teu pai não contou, tua mãe não contou? Tu donde é, menino? Domício informou. O velho sorriu e disse claro: - Teu pai e tua mãe não contaram, não podiam contar. O sangue dos Vieiras desgraçou a Pedra. E fechou a cara. Levantou-se: - O  sangue dos Vieiras.
Bento ficou com medo. Fazia medo a voz rouca e arrastada do velho. Agora ele parecia atuado: - Tou ouvindo o sino tocando. ... Lá vem Batista com as pedras na mão. Ele vem do Piancó. Ele diz pra todos: “Ainda não sou eu. Só tenho as três pedras. Uma é o Padre, a outra é o Filho, a outra é o Espírito. Eu venho pra dizer que o Filho não tarda. Ele se chama Ferreira, vem no corpo de Antônio Ferreira vencer os demônios, abrir a porta dos homens que não querem abrir a porta para os pobres, botar os pobres no lugar dos ricos e os ricos no lugar dos pobres” ... E vieram os malvados e levaram Batista para os confins. Mataram ele e tiraram o couro como se faz com os bodes. Mas as três pedras ficaram enterradas na Pedra Bonita. No pé da Pedra ficou as pedrinhas. Era o Pai, era o Filho, era o Espírito. Lá um dia os catolezeiros começaram a gemer, os pés de mato a gemer, a terra a bulir, a Pedra grande a suar. Descia da Pedra grande um suor frio de gente, era o Filho que vinha chegando na carne e no corpo de Antônio Ferreira. Era o Filho que vinha sofrendo pelos homens. Aí, menino, a Pedra  ficou como nas missões do frei Fabiano. Vinha gente de cem léguas, povo de todo mundo, pretos e brancos, ricos e pobres. O capitão Venâncio dos Olhos-d’Água vendeu tudo para viver por lá. ... Antônio Vieira começou a fazer os milagres do Filho. Vinha cego de nascença, e ele curava. Vinha feridento de feder, e ele curava. Vinha entrevado, e ele curava. Mas o Filho queria o sangue dos inocentes para o milagre grande. Lá longe estava a lagoa de sal. ... Era das lágrimas dos homens, dos homens que sofriam, das mulheres que não podiam parir, dos meninos que não podiam falar. Daquela lagoa tinha que sair a felicidade do mundo.
Lá uma madrugada ele [o Filho] gritou para o povo: “Acorda gente, hoje é o dia da nova criação do mundo. Deus meu Pai precisa do sangue dos inocentes para a obra da criação.” Do sangue dos inocentes tinham que sair o mundo novo, a terra feliz. ... A cabeleira do Filho o vento sacudia e o céu parecia feito de sangue com a madrugada. O povo tremia. As mulheres agarradas com os filhos sem querer dar e os pais soluçando. E o filho de Deus no corpo de Antônio Ferreira gritando: “Eu quero é o sangue dos inocentes. O sangue dos meninos que chupam os peitos das mães. O sangue que é leite ainda e que é como o sangue do Menino Deus.” ... O Filho de Deus foi mais para cima da Pedra grande e gritou com mais força: “Eu quero é o sangue dos inocentes. Deus meu Pai me mandou para desenterrar os tesouros da terra e salvar o mundo.” Aí as mulheres correram com os filhos para junto dele. E o Filho de Deus foi cortando cabeça por cabeça e banhando a Pedra. Mas as mulheres choraram com pena dos filhos. ... O Filho de Deus chorava embaixo. Saía sangue dos olhos dele. ... E as mulheres que choraram pelos filhos tinham aborrecido a Deus. Que morressem todas elas. Que se matassem as mães venenosas, as mães infelizes. Correram atrás das mulheres pela caatinga. Degolaram muitas para ver se as lágrimas do Filho de Deus ficavam brancas sem o sangue que era o sangue do mundo. Aí, meninos, apareceu um desgraçado. A grande desgraça que acabou com a visita do Filho de Deus na terra. Fugiu do meio do povo um traidor, um Judas correu para as bandas do Açu, fugiu para o meio das feras e foi contar. E sucedeu a maior judiação de todas. O Filho de Deus chamou o povo e disse: “Vamos morrer. Vem gente de longe atrás de nós.” E botou a coroa na cabeça, a coroa de mato verde, e saiu cantando com o povo de mato afora. ... Era já tarde no meio da caatinga, quando se ouviu uma cavalhada andando. Parecia o tropel do demônio. Era a tropa. E se deu a desgraça. O Filho de Deus varado de bala, com o corpo sangrando, com cem punhais no coração. E a mortandade dos outros. ... O resto fugiu e os urubus tiveram carniça para muitos dias. O corpo do Filho de Deus foi levado pelos devotos. Disseram que ele cheirava como um pé de roseira. E tudo se acabou como no dia do juízo. ...
O homem que correu para ensinar o caminho à tropa foi um de tua gente, um Vieira. ... Os dois irmãos ficaram olhando para o velho com pavor. – Menino, tu não tem culpa de nada. O Filho de Deus um dia aparece e enche o mundo de felicidade. A lagoa se desencanta. E o mundo inteiro cantará os benditos do Filho de Deus.
            E assim o velho Zé Pedro termina o relato da Pedra, como realmente ocorrido em 1838. O texto do romance desenvolve-se, a partir daí, girando em torno da Vila do Açu e da pedra Bonita. Ao longo do relato temos a narração de muitas situações próprias do Nordeste brasileiro, a ação do cangaço, os abusos de quem tinha o poder em suas mãos, uma série de acontecimentos, que, de alguma forma, contribuem para que o povo aceite um doido como um novo enviado de D. Sebastião e creia que dessa vez o milagre aconteceria, D. Sebastião voltaria e aí os problemas de todos se acabariam. E então já quase no final do livro, vemos novamente a manifestação do mito messiânico sebastianista, favorecido pela busca do sertanejo por dias melhores: “o santo dava riqueza, saúde. No dia do milagre grande, não haveria mais ricos nem mais pobres. Tudo ficaria igual.” (p. 205)
Tinha aparecido um santo na Pedra Bonita. Era um homem barbado, de cajado na mão, com um cavalo branco que fazia milagre. Já havia muita gente descendo para a Pedra. O velho Zé Pedro dizia ao povo que aquele era mesmo um enviado do Filho que há cem anos dera o sangue pelo povo. ... (p. 204)
Estão dizendo que a lagoa vai se desencantar. E vão tirar ouro e pedra dela que dá para enricar todo mundo. ... A Pedra está coalhada de gente. O velho Zé Pedro que mora por lá há anos falou pra o povo que o homem é igual ao santo dos antigos. (p. 212)
            Bento começa a pensar na família lá na Pedra com o Santo. O padre Amâncio a esta altura esta no leito de morte. O que seria dele, um Vieira? Onde aquilo tudo acabaria? Era a maldição dos Vieiras a pesar sobre ele.
Um antigo da família dos Vieiras viera correndo para levar a tropa que liquidou tudo e acabou com o povo da Pedra. O sangue dos meninos ensopou o barro duro, a areia quente. Um Vieira, um homem que fora o pai do velho Aparício [avô de Bento], deixara os seus e fora com o governo matar o povo que acreditava no desencanto da lagoa milagrosa. O santo queria o sangue das donzelas e dos meninos para lavar a pedra, para com isto fazer o mundo virar. Rios de leite correriam para os famintos. O sertão seria verde de inverno a verão. Os cangaceiros ficariam mansos, a terra um paraíso de fartura e de beleza. E o desgraçado, por cause de uma moça, correu para levar com ele a morte dos seus. (p. 236)


            Com a chegada do Major Nunes e seus soldados, Bento ficou apreensivo. De madrugada a tropa marcharia para o massacre do povo da Pedra:
Seria o fim de tudo. O povo do Açu se vingaria. Até que afinal acabariam com a Pedra. Naquela noite não dormiu. Esteve inquieto. Cheio de apreensões. Seu padrinho pedira confessor. Via a morte a dois passos. A tropa pronta para se jogar em cima dos fanáticos. O povo do Açu com a grande oportunidade. Há um século tinham feito a mesma coisa. No meio da caatinga pipocou o tiroteio do clavinote. Sangraram a punhal os restos dos romeiros que fugiam. Um antigo dos Vieiras ia na frente da tropa, ensinando o caminho, mostrando o esconderijo dos que tinham escapado. Fora um seu parente. Lá fora a rua estava cheia de soldados, de gente armada, de cabras mandados pelos fazendeiros de perto. Era um exército para esmagar, reduzir tudo a nada. Domício no meio dos fanáticos, sua mãe, seu pai. O padre morria. E os seus seriam esmagados. (p.246)

            A pedido do padre, Bento tinha que ir até a cidade de Dores para trazer o padre de lá, pois padre Amâncio queria se confessar.
Ele teria que sair de madrugada e não conseguia dormir. Melhor seria aproveitar a lua e ganhar para Dores. E foi o que fez. Andaria o resto da noite e pela manhã cedo poderia estar no Açu com o padre que confortasse o padrinho nos últimos instantes. ... E foi andando de estrada afora. p. 246.
            Vários pensamentos contraditórios vêm à cabeça de Bento. Ir à Dores ou ir à Pedra avisar da vinda do povo do Açu, para que eles pudessem se defender. E então Bento chegou à encruzilhada que dava para Dores e para a Pedra Bonita. Era o momento decisivo. Tudo estava em jogo. Após momentos que devem ter parecido séculos, Bento decide ir para a Pedra Bonita.
Domício teria que saber de tudo. O santo teria que salvar o seu povo. Esporeou o cavalo. A madrugada avermelhava o céu. Os pássaros da caatinga começavam a cantar.  E Bento partiu a galope para a Pedra Bonita. p. 249.
            Assim termina o relato, Bento fazendo exatamente o contrário do que fez seu bisavô, salvando o Santo e o povo da Pedra, expiando a culpa da raça dos Vieiras, o sangue de Judas.
Os trechos arrolados mostram exatamente a manifestação do mito Sebastianista entre nós. É interessante notar como é grande a força que o mito tem sobre o imaginário popular e como o mesmo consegue levar multidões a cometerem atos de barbárie em nome de uma fé cega, motivada pela esperança de dias melhores.
Podemos notar que o relato de Lins do Rego é bem próximo ao relato histórico do episódio de 1838. O autor constrói o romance em cima da história passada, dando-lhe um final diferente – não ao movimento de 1838, mas à nova manifestação de um “messias”, que resolveria os problemas da gente do sertão e inauguraria uma nova era de igualdade e felicidade geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
            Como vimos, o Sebastianismo, trazido pelos imigrantes portugueses, passou ao Brasil e foi aqui rapidamente absorvido e adaptado pela gente do Nordeste. Sendo, em última análise, um movimento messiânico, encontrou equivalentes em movimentos messiânicos brasileiros, alguns dos quais citavam o nome de D. Sebastião, outros assinalavam a espera do monarca salvador. Vários escritores brasileiros, como dissemos no início, escreveram sobre estes movimentos ou manifestações messiânicas: Euclides da Cunha, Plínio Salgado, Luiz da Câmara Cascudo, Ariano Suassuna e José Lins do Rego, entre outros.
            O messianismo nordestino está vinculado à corrente Sebastianista que acredita no retorno de D. Sebastião, o rei que ficou encantado desde a batalha de Alcácer-Quibir. Tanto nas profecias achadas em Canudos quanto no incidente da Pedra Bonita um rei surgiria com todo o seu exército: em Pedra Bonita seria preciso desencantá-lo com o sangue das crianças, em Canudos ele surgiria do mar para destruir a ordem injusta, caracterizada como a República em ambas e como também a Igreja Católica Romana no caso da profecia de Pedra Bonita. (OLIVEIRA, 1996:9).
            Através da análise de alguns trechos do romance Pedra Bonita, pudemos ter uma reflexão sobre a força que o mito exerce sobre o imaginário popular, motivando a luta por dias melhores. Há uma boa literatura sobre o episódio de 1838, mas muitos nunca ouviram falar da Pedra Bonita e do mito Sebastianista.
            Longe de pretender haver esgotado o assunto em nossa pesquisa, queremos antes que a mesma sirva como indicadora de caminhos, para que quem sabe outros levem adiante a pesquisa, melhorado-a e levantando outras questões pertinentes ao tema, não abordadas em nosso trabalho.
            Esperamos que nosso objetivo com esta pesquisa, qual seja o de aproximar de nossa comunidade acadêmica esse episódio de nossa história, representado em nossa Literatura, tenha sido alcançado.

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